TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR
O sentido de democracia se sobrepõe à eventual difamação de políticos. Daí a proteção da liberdade de opinião e manifestação
É UMA antiga palavra grega que aproximadamente significava liberdade de falar tudo, portanto, de falar o que se pensa, uma espécie de qualidade moral exigida para saber a verdade e, assim, para comunicá-la aos outros. A autêntica “parrhesia” só existia onde houvesse democracia.
Desde cedo foi percebida a dificuldade de dizer livremente o que se sabe em forma compatível com a liberdade de viver cada qual como lhe pareça. No limite entre ambos, o fantasma da censura.
Censurar a liberdade de dizer em nome do interesse coletivo é tema que atravessou dois milênios e ainda nos preocupa.
Desde a era moderna, liberdade opõe-se à tutela estatal. Ninguém, a não ser o próprio homem, é senhor de sua consciência, do seu pensar, do seu agir. Aí o cerne da responsabilidade.
Cabe ao Estado propiciar-lhe as condições, mas jamais substituir-se ao ser humano na definição das escolhas e da correspondente ação. Daí a proibição da censura, que, como instituição estatal, própria dos regimes autoritários, sempre busca justificativas, utópicas e sempre frustrantes, para educar os adultos, agir como guardião e impedi-los de atividade política (Hannah Arendt).
O revés da medalha é a proteção da privacidade, que, para os antigos gregos, era a condenação da “parrhesia” perversa, a fofoca difamante e sem peias. E, hoje, da palavra que viola a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem. Daí a busca de critérios para delimitar direitos.
Nos EUA, mormente quando a liberdade de opinião era manifestada pela imprensa, a relação tensional entre o direito à honra e à imagem e os direitos reconhecidos na “First Amendment” (Primeira Emenda) foi bastante debatida. De um lado, o delito por danos à reputação (tradição no “common law”); de outro, o direito de opinião (“free speech”) e o direito à liberdade de publicação.
Atualmente, o debate foi superado pela Suprema Corte, cujo “leading case” é o processo “New York Times” vs. Sullivan, de 1964, que estabeleceu a regra da “actual malice”.
Por ela, funcionários públicos e políticos atingidos em sua reputação ou pessoas privadas cuja atividade repercutisse publicamente (caso Gertz) só teriam seu interesse protegido caso pudessem demonstrar que a informação ofensiva fora feita com dolo.
A corte entendeu que um ataque, ainda que difamatório, mas não intencional, deveria ser considerado como uma forma de discurso político, o principal objeto de proteção da “First Amendment”.
Quanto a personalidades públicas, o seu direito de defesa da privacidade deveria ceder diante do direito de liberdade de manifestação, central para o exercício da democracia.
A “First Amendment”, pela corte, assume que qualquer cidadão deve ser livre para contribuir para o debate político e que restrições impostas pelo governo e por políticos devem ser vistas com suspeita.
O sentido de democracia se sobrepõe soberanamente à eventual difamação de políticos, funcionários de governo ou pessoas com relevância pública. Daí a proteção da liberdade de opinião e manifestação.
Na Alemanha, o posicionamento da Corte Constitucional não é diferente. Conquanto a Lei Fundamental (artigo 5º) limite expressamente o direito à liberdade de opinião e sua manifestação quando em conflito com a inviolabilidade da honra pessoal, a corte recusa essa proteção quando o difamado participa do debate político, excepcionando os casos de calúnia.
Princípio semelhante à regra “New York Times”.
Mesmo na Inglaterra, onde a proteção à reputação é maior, as cortes aceitam a proteção à liberdade quando o público tem interesse legítimo em receber a informação, e o editor, o dever de publicá-la.
Tais posicionamentos decorrem do regime democrático. O direito de liberdade de opinião é correlato ao de informação, constituinte da cidadania ao lado de outros direitos, como o de votar e ser votado e o de ampla participação política pelo livre debate de livres informações.
No Brasil, “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição”. E o meio constitucional para lidar com abusos é claro: “assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Ou seja, o instrumento não é proibir, nem prévia nem posteriormente. A proibição destrói a liberdade. E, sem ela, destrói-se junto a democracia.
Para os antigos gregos, a “parrhesia” era aliada à crítica, que estabelecia a singularidade de cada um na igualdade de todos. Era respeitada, até porque exercida sem medo. E o medo era a arma do tirano. Mas, entre tirania e democracia, falar livremente era sempre preferível a ser calado.
TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR , 68, advogado, é professor titular da Faculdade de Direito da USP. É autor, entre outras obras, de “Introdução ao Estudo do Direito”.