TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR
Na Constituição, o constituinte fez inserir a liberdade como um dos valores supremos do Estado democrático de Direito
O TABACO é um dos vilões da vida contemporânea. Mas não é proibida nem sua produção nem seu consumo. Em nenhuma parte do mundo se pune o “tráfico” de tabaco, muito menos o “porte” e/ou o “uso”. Porém, o fumo pode incomodar os outros. Até onde vai a liberdade de quem fuma? E a de quem oferece espaço para o fumante? Existe uma liberdade de fumar em confronto com um direito de não aspirar a fumaça expelida pelo fumante?
Já no preâmbulo da Constituição, o constituinte fez inserir a liberdade como um dos valores supremos do Estado democrático de Direito, como um dos pilares “de uma sociedade fraterna”. Em seguida, a liberdade é garantida no rol dos direitos fundamentais (Constituição Federal, artigo 5º, “caput”).
Liberdade, assim, é direito que dá ao ser humano o espaço da cidadania, que não se vê absorvida pela sociabilidade inerente à sua condição. Afirma-se, assim, a singularidade do ser humano, igual entre iguais.
Portanto, a liberdade constitucionalmente assegurada implica a existência de uma permissão forte, que não resulta da mera ausência de proibição, mas que confere, ostensivamente, para cada indivíduo, a possibilidade de escolher seu próprio curso de ação, ainda que venha a sofrer conseqüências prejudiciais de seus atos.
Isso é particularmente relevante para a questão referente ao alcance das restrições impostas ao tabagismo.
A Constituição entende o tabaco como um produto cuja propaganda está sujeita a restrições por lei (artigo 220, parágrafo 4º). Se o produto é lícito, o consumo pode ser disciplinado em lei que lhe estabelecerá as condições de exercício, mas jamais a supressão do seu exercício a pretexto de discipliná-lo.
De um lado, estão os meios para a proteção do próprio fumante contra danos advindos do consumo, as imposições ao produtor do dever de esclarecer sobre a nocividade etc. De outro lado, os meios de proteção ao não-fumante, em termos de sua saúde, a fim de que não venha a aspirar a fumaça. É o direito de não ver sua saúde afetada pelo tabaco, por conta do direito da livre opção de não fumar.
Depreendem-se, assim, da proteção constitucional à liberdade e à saúde duas normas claras e gerais quanto ao destinatário, com relação à ação de fumar: uma permissão forte de fumar e uma permissão forte de não fumar.
A legislação federal proíbe, assim, o fumo quando o fumante estiver em recinto coletivo, público ou privado, salvo se houver nele área arejada destinada a esse fim: fumar. A ressalva, expressa, refere-se ao recinto coletivo, mas não a qualquer outro recinto, fora daquele, pois, se assim fosse, isso tornaria inútil a ressalva.
O problema está em como conciliar a compatibilização entre os direitos (do fumante e do não-fumante) e a competência para tomar a decisão de compatibilizar, até impondo a proibição total de fumar naqueles recintos coletivos privados.
Existem ambientes coletivos, privados, em que a convivência de fumantes e não-fumantes ocorre por força de uma necessidade externa que os obriga, de fato, a conviver.
É possível afirmar que, nesses casos, há sentido constitucional na proibição genérica de fumar, salvo em recintos destinados apenas aos fumantes, com o que se concilia o direito destes de fumar.
Deve-se, nesse ponto, evitar um equívoco. É preciso ficar claro que ser fumante ou não-fumante não diz respeito a uma condição da pessoa, mas à opção exercida por alguém acerca da sua exposição ou não aos riscos do tabaco. Por de trás da distinção entre saudável e não-saudável está a própria liberdade. Por exemplo, ninguém pode ser obrigado a receber uma transfusão de sangue se sua opção religiosa o proíbe.
Portanto, uma proibição absoluta de fumar para todo e qualquer recinto coletivo fere não só o espaço reservado à autonomia privada, como fere também o dever de conciliar os direitos do fumante e do não-fumante, quando em ambientes coletivos: o dever do Estado de harmonizar, tecnicamente, os respectivos exercícios. Liberdade, nesses termos, opõe-se à tutela estatal.
Como respondeu, certa vez, Hannah Arendt a amigos que a advertiam para que parasse de fumar em virtude de problemas com sua saúde: “Recuso-me a viver para minha saúde!”.
TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR , 67, advogado, é professor titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP. É autor, entre outras obras, de “Direito Constitucional”.